sexta-feira, 24 de abril de 2009

Couleurs

Sala abafada, cheia de sombras. Um cheiro de chá de maça no ar misturado com o odor das velharias. Mesa redonda, escura, com cascas de amendoim espalhadas por toda a superfície. A toalha enorme de renda cor bege estendida sobre o móvel caía até o chão que há muito não era encerado. Um piso parquet com retângulos ora marrons, ora de um amarelo queimado, já estava sem brilho. Contrastando com fosco do piso, pegadas de terra em formato de um scarpin tamanho trinta e seis seguiam até o tapete cinza de um veludo gasto. Em cima da mesinha de centro, de madeira restaurada, estavam espalhadas fotos antigas, amareladas, em um preto-e-branco gasto. Algumas ilustravam cenas de montanhas e castelos, outras estampavam cenas de amor em frente à Torre Eiffel. Muitos beijos apaixonados de um casal aparentemente livre. O abajur ainda estava aceso. Ao lado das fotografias, selos de lugares distantes como Alemanha, França, Suíça, Áustria e Itália. E uma carta aberta. As pegadas que chegaram até o sofá cor de rosa, que agora era salmão devido ao acúmulo da poeira e das manchas de café, seguiram até a porta escancarada, tosca, de maçaneta quebrada, que dava para o corredor de entrada do apartamento. A chave se encontrava caída ao chão, em cima do tapete de entrada que dizia: “Não perturbe”. Mesmo enfraquecidas, as pegadas ainda podiam ser vistas nos degraus daquela escada arcaica que descia ao térreo. Perto da portaria, uma echarpe de cetim indiano, cor de laranja, um tanto brilhosa, estava caída sobre a grama verde, recém molhada. Uma mistura de cedro, âmbar, e gardênia perfumava o ar. Marcas de pneus no asfalto. Um táxi bem à frente.

sábado, 4 de abril de 2009

Vida Clandestina

Estava sentada naquele sofá que comprou no antiquário. Tinha achado bonito quando o viu em frente à loja, localizada numa ruela do centro da cidade. Aquele marrom escuro, de um couro visivelmente surrado, parecia acenar para ela. Seus amigos a criticaram: ‘Teus gostos estão cada vez mais esquisitos, nunca optas pela beleza’. ‘E o que é belo?’, pensou ela, que sabia muito bem que aquilo pouco lhe importava. Nunca foi de seguir moda, tampouco acreditava que o belo é algo que se possa revestir em formas ou estilos. O belo sempre lhe fora peculiar, sim. Vestia seu pulôver de lã, cor de vinho tinto, que comprara no inverno anterior, e por baixo usava uma camisa de gola alta, cor de cinza. Era uma noite fria, mas estava tão profundamente mergulhada em seus próprios pensamentos que até a veneziana aberta lhe era indiferente, e o vento que entrava pela janela não parecia lhe tocar. Sobre suas coxas estava aberto um volume antigo de Anna Karênina, um original russo de capa grossa, dum verde oliva escuro, com título dourado em caligrafia desenhada. Parara de súbito sua leitura, sentiu-se ofegante, o coração batendo forte. Nunca antes tinha se visto tão familiar em algum outro livro. Nunca antes soube exatamente o que sentia aquela personagem presa nas linhas de outra obra. Estava pensando em como sua vida se confundia com aquelas frases; como parecia com Anna Karênina, sempre atrás de uma felicidade que significava a renúncia de outros sentimentos. E viu como era medrosa. Ao contrário da personagem de Tolstoi, tinha receio de arriscar. Medo da opinião alheia? Medo dos outros? Não. Medo de si mesma. Medo de ser feliz. Estava em uma constante corrida em busca da felicidade, mas sempre ao chegar perto dela, recuava. Recuava como se a felicidade, ao invés de lhe sorrir, lhe virasse as costas. Sentiu-se profundamente triste. Lembrou do aceno que o marido lhe dera antes de ir para a guerra. Fora o último. Pensou em como fazia falta aquele homem que segurava sua cabeça contra o peito, afagando seus cabelos. Como era difícil não ter alguém que vivesse por si. Aproximou-se lentamente do cômodo onde estavam suas coisas; deixou o livro caído ao chão; pegou um cigarro e o acendeu. Pensou em como era uma mulher dramática, como eram suscetíveis seus sentimentos. Parou de pensar. Foi dormir.